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A camisa do homem feliz e a suposta felicidade


O conto "A camisa do homem feliz", cujo relato é de Ítalo Calvino (1990), leva-nos a uma reflexão sobre a dinâmica da felicidade. De forma semelhante, Freud (1931/2006), no texto "Mal-estar na civilização" também discute o problema da felicidade, no entanto, ele o associa ao tema do sofrimento. A fim de articular os dois autores, primeiramente, apresentarei o conto para depois associá-lo às ideias de Freud (1931/2006).

Era uma vez um rei que tinha um filho único que ele amava muito. Esse príncipe era motivo de muita preocupação para o seu pai, pois sempre estava muito triste e insatisfeito. A fim de ajudar seu filho, o rei buscou ajuda de filósofos, doutores e professores que vieram de toda parte do mundo aconselhá-lo. Depois de se reunirem, eles deram a seguinte orientação:

  • Majestade, pensamos, lemos as estrelas; eis o que deve fazer. Procure um homem que seja feliz, mas feliz em tudo, e troque a camisa de seu filho com a dele.


A partir disso, o rei passou a procurar pessoas que ele julgava que eram felizes e para se certificar que elas, de fato, eram felizes, ele fazia uma proposta para que elas fossem morar em seu castelo. Se a pessoa aceitasse o convite, ele compreendia que ela não era feliz por não estar satisfeita com a vida que levava. Depois de alguns encontros mal-sucedidos, o rei saiu para caçar. Enquanto ele caminhava pela mata, ouviu um jovem cantando alegremente e pensou: "quem canta assim só pode ser feliz". Ele se aproximou do jovem e iniciou um diálogo com ele:


– Bom dia, Majestade – cumprimentou o jovem. Tão cedo e já pelos campos?


– Bendito seja você! Quer que o leve comigo para a capital? será meu amigo.


– Ai, ai, ai, majestade,não, não mesmo, obrigado. Não trocaria de lugar nem com o papa.


– Mas por que você, um rapaz tão forte…


O rei entendeu que estava diante de um homem feliz e que sua camisa salvaria seu filho, no entanto, quando o jovem desabotoou seu casaco, o rei ficou decepcionado. O homem feliz não tinha camisa.

Freud (1931/2006) associa o problema da felicidade ao do sofrimento, já que na busca da felicidade há uma dicotomia. Por um lado, o sujeito busca a ausência de sofrimento e desprazer, por outro, busca momentos de prazer. Dessa forma, uma das metas da felicidade é evitar o sofrimento. Nesse sentido, para alcançarmos a felicidade, fugimos do sofrimento.

Na relação com a felicidade, o sujeito parece ter uma postura ativa assim como o rei que saiu em busca da camisa. Já no sofrimento, o indivíduo parece ocupar um lugar mais passivo. Ou seja, tentamos atingir a felicidade, em contrapartida, somos atingidos pelo sofrimento. Isso se comprova quando Freud (1931/2006) afirma que a felicidade é restringida pela nossa constituição, já a infelicidade pode ser experimentada a partir de três direções: do corpo, condenado a finitude; do mundo externo que pode se voltar contra nós com forças de destruição, por último, pode advir do nosso relacionamento com os outros homens. Nesse sentido, Freud sugere que, diferentemente da felicidade, o sofrimento faz parte da nossa constituição. No conto, o rei sai em busca da suposta felicidade, mas não a encontra onde ele achava que iria encontrá-la, muito pelo contrário, é em um momento de distração que ela surge.

Dessa forma, o desfecho da história mostra uma inversão, pois ela não termina com uma relação de causa e efeito em que o rei busca e encontra o que estava procurando, pelo contrário, é a felicidade que vai ao seu encontro. Além disso, a felicidade se apresenta de uma forma que o rei não imaginava, por isso ela é suposta. Ele acreditava que a encontraria sob a forma de uma camisa. A ausência da camisa naquele que foi considerado o homem feliz pelo rei talvez represente a ideia de que a felicidade se constrói a partir de uma falta e daquilo que supomos que ela seja. Não só isso, a felicidade é aquilo que nunca iremos encontrar de forma concreta, talvez seja por isso que Freud (1931/2006) tenha afirmado que a felicidade é uma manifestação episódica, ou seja, ela só pode ser descrita por meio de momentos de prazer.

Por isso, a expressão "busca pela felicidade" define bem o constante movimento em direção a algo que existe apenas a partir de uma suposição. Em outras palavras: a camisa não existe, mas precisamos acreditar na sua existência, pois é isso que nos motiva a viver. No final, o conto revela de forma desafiadora que a vida é essa busca incessante por algo que nunca encontraremos e que paradoxalmente pode nos encontrar.


Referências bibliográficas


Calvino, I. Fábulas Italianas. Companhia de bolso. 1990.


Freud, S. (2006). Mal-estar na civilização. In: J. Strachey (Ed. E J. Salomão, Trad.). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 21 ). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1931).


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